21/05/2014

O Assalto

Peter Lee

“Todos para o chão!”, grita o mais gordo, “Já!”. A caçadeira sónica treme um pouco nas suas mãos, como se não estivesse habituado. Parece nervoso. Deito-me sem hesitar no chão frio, mas um saturnaneliano do outro lado da sala não obedece, as partículas gasosas que o constituem a densificarem-se numa série de tentáculos finos que deslizam por um teclado repleto de símbolos incompreensíveis dentro do tubo que o contém. 

“Mas estão a brincar?”, exclama o saturnaneliano, via sintetizador que lhe empresta uma voz, “O que é que pensam que estão a fazer?”. Um outro homem, mais magro, toca no ombro do gordo e aponta para mim. Sou incapaz de desviar o olhar, talvez seja eu o próximo, mas ambos os homens desistem depressa. 

O gordo levanta a caçadeira sónica e aponta-a ao vidro do tubo de viagem do saturnaneliano, “Para o chão!”, a voz treme-lhe, nervoso, “Não volto a r-r-repetir!”. Tanto eu como todos os outros seres presentes na sala observamos a cena, à espera da reacção do alienígena gasoso, que não se faz esperar: pressiona furiosamente uma combinação de teclas com os seus tentáculos semi-sólidos, e uma portinhola abre-se rapidamente por baixo do vidro, revelando uma série de orifícios redondos, as pontas mortíferas de pequenos desintegradores laser. O gordo olha novamente para mim, consigo ver o suor a escorrer-lhe pela testa. Engole em seco e, antes que o saturnaneliano tenha tempo de reagir, pressiona o gatilho, disparando uma potente onda sónica. 

Só tenho tempo de cobrir a cabeça com os braços antes dos estilhaços me atingirem, felizmente demasiado desfeitos para me ferirem. Quando levanto a cabeça, depois de deixar o pó assentar, não há um único vestígio do saturnaneliano, excepto a camada de detritos do seu tubo de viagem misturados com outros tantos da sala em redor. O gordo treme convulsivamente e quase deixa cair a caçadeira, mas o magro tira-lha das mãos antes que isso aconteça, dando-lhe palmadinhas no ombro e passando-lhe para as mãos uma mala com o conteúdo a chocalhar. 

“Vá, sabes que não podemos parar agora…”, diz o magro, tão baixo que apenas eu e uma jovem de Marte mais perto deles conseguimos ouvir, “Leva a mala e vai abrir o cofre.”. O gordo hesita, olha-me novamente, o terror estampado nos olhos, provavelmente por nunca ter matado ninguém antes, e acho que consigo ver uma pequena faísca de vontade. Vontade de me matar.

Habituou-se depressa. 

Enquanto o gordo se dirige para o fundo da sala, com a mala a chocalhar por todos os lados, o magro percorre toda a gente com o olhar, mais firme que o do outro homem, mas não por muito. Um misterioso trio de túnicas e capuzes negros mantém as mãos quitinosas em cima da cabeça, enquanto fitam o chão. Não reconheço de onde vêm, mas sei que aquilo que parece uma lesma esverdeada, grande e gorda, com um Regulador Térmico embutido no corpo é uma fêmea de Plutão. Um velhote humano está a ficar ensopado no visco da plutoniana, derramado por vários poros na parte inferior do seu corpo devido ao nervosismo. A jovem de Marte tem a pele azulada, aspecto humanóide, pequenas protuberâncias na testa à laia de cornos, e dá a mão a um marciano de ascendência terrestre evidenciada pela sua cor mais esbatida, quase igual à minha. As outras únicas pessoas na sala principal do banco sou eu e os dois criminosos. 

“Deixem-se estar assim.”, diz o magro com a voz a tremer, “Que ninguém se mexa, ou…”, hesita, inseguro, “Ou acaba como o saturnaneliano!”. A plutoniana soltou mais uma camada de visco que empapou ainda mais o velho ao seu lado, que pareceu não notar. Estava demasiado concentrado em manter-se quieto e calado. 

Enquanto o magro nos vigia, o gordo olha para a grande porta blindada do cofre, sem saber muito bem o que fazer. Vasculha a mala apressadamente, atirando ferramentas para fora em total desordem. Sua cada vez mais, as pingas nervosas a cair sobre as ferramentas. Regressa para junto do magro e segreda-lhe ao ouvido. Olham para mim, mas viram rapidamente as cabeças ao encontrarem o meu olhar. Rastejo ligeiramente para mais perto deles, de forma a ouvir o que dizem. 

“Não sei abrir aquela merda!”, sussurra o gordo, “O que é que o gajo quer que a gente faça?”. O magro engole em seco, sem saber o que responder. Talvez eu possa fazer alguma coisa. Apoio os braços no chão de pedra fria e preparo-me para me erguer, mas a jovem marciana antecipa-se, pondo-se em pé com um pulo rápido. Deito-me novamente, muito devagar. As suas feições azuis nada deixam revelar para além de uma determinação implacável bem expressa nos seus olhos amarelos. O magro aponta-lhe rapidamente a caçadeira, “Para o chão! O que raio pensas que estás a fazer?”, grita, “Para o chão!”. 

A marciana recua dois passos, batendo com os calcanhares na testa do namorado. Estar subitamente na mira da arma parece ter quebrado a sua coragem. 

“Eu…”, hesita, “Nós…”, diz, apontando para ela e para o namorado, ainda estendido e esse sim, aterrorizado, “Nós podemos tentar abrir o cofre.”. O magro ergue o sobrolho e parece relaxar, mas sem desviar a arma um milímetro que seja. O resto da sala mantém-se silenciosa enquanto a rapariga ajuda o namorado a pôr-se de pé, ligeiramente contrafeito. “Sim, nós abrimos.”, afirma ele, enquanto treme que nem varas verdes, “Não… Não é preciso morrer mais ninguém.”. 

Encontram-se a pouca distância de mim, e embora o rapaz não consiga desviar o olhar do cano da arma sónica, a rapariga passa rapidamente os olhos por todos os presentes na sala, demorando-se mais em mim do que em qualquer um dos outros. Aceno com a cabeça, tentando expressar a minha gratidão por se adiantar ao que eu próprio tencionava fazer, e ela deixa o olhar regressar, por fim, ao homem magro e nervoso que tem o dedo no gatilho. Este baixa a arma. 

“Fica com a arma.”, diz para o gordo, enquanto lhe passa a caçadeira, “E… Hum… Fica de vigia aqui na sala.”, aponta para o casal marciano, “Eu vou com estes dois tentar abrir o cofre.”. O gordo pega na caçadeira e vira-se para nós, cada vez mais suado e nervoso. O magro segue atrás do casal em direcção ao cofre. 

É então que a plutoniana solta um gemido agudo e descarrega a maior dose de visco até então, fazendo o velho a seu lado tossir e ceder finalmente à vontade de se afastar, enojado. Fá-lo rapidamente e ainda mais rapidamente retoma a uma posição submissa, como se tivesse medo que o matassem até por respirar mais depressa do que era suposto. Uma das figuras trajadas de negro levanta-se, salta para cima da plutoniana e trespassa o seu corpo repetidas vezes com as suas mãos quitinosas, matando-a e regressando à posição original entre os outros dois demasiado depressa para que lhe conseguisse sequer ver a cara. Impressionante. 

“P-p-para que foi isso?!”, quase soluça o gordo, demasiado surpreendido pela rapidez do ataque para ter qualquer outra reacção. A resposta não chega, e as três criaturas misteriosas continuam deitadas e imperturbáveis. 

“Suponho,”, começo eu, “que tenha sido para evitar o nervosismo da senhora de Plutão.”. Todas as caras se viram para mim, excepto as das três criaturas de negro. “Os plutonianos não conseguem esconder o seu nervosismo.”, digo, com esperança de que o resto da explicação fosse óbvia. As cinco caras que me fitam mostram o contrário. Continuo: “Não é boa ideia ter alguém constantemente a guinchar e a derramar fluidos corporais quando se tem um dedo nervoso no gatilho, não é verdade?”. O silêncio reina na sala durante uns momentos, interrompido apenas após o velho tossir, ainda engasgado com o visco da plutoniana. Nessa altura, o casal marciano prossegue em direcção ao cofre, seguidos pelo magro. O gordo continua a tremer e a suar, limpa constantemente as mãos ao fato de banqueiro e afasta-se das três figuras encapuzadas, com a caçadeira levemente erguida na sua direcção. 

A raça dessas três figuras continua a intrigar-me. Aproveito que o magro está longe e o gordo distraído da sua aparente vontade de me matar, para pensar nisso. As mãos, as únicas partes do corpo deixadas a descoberto, estão cobertas de placas quitinosas e terminam em cinco dedos como os humanos, mas parecem ter dois polegares oponíveis e opostos um ao outro. De estatura não devem ultrapassar o metro e trinta, e embora as túnicas ocultem os seus corpos, não os adivinho de alguma forma gordos. Os capuzes também não deixam entrever nada. Por mais que me esforce, não os consigo localizar. Fascinante. 

De repente ouve-se o barulho duma sirene a aproximar-se. Toda a gente se imobiliza de imediato, sem saber o que fazer. O casal marciano abraça-se e assim se deixam cair de joelhos, desaparecendo do meu campo de visão para debaixo dum balcão. O magro engole em seco e aproxima-se lentamente do gordo, que fita a porta do banco, directamente atrás de mim, de olhos esbugalhados; o velho faz o mesmo, mas as três figuras de negro não se mexem um milímetro que seja. 

A sirene está próxima o suficiente para supor que a viatura está parada em frente ao banco. Alguém a desliga, e pouco depois uma voz mecânica grita: “Daqui fala a Polícia Espacial. Esta porta é a única saída, a rendição é a única opção!”. Ninguém na sala se mexe. “Se ninguém me responder dentro de trinta segundos, forçarei a entrada!”. A única resposta é a tosse do velho. Passam dez segundos. Vinte. Vinte e cinco. Vinte e nove. A porta é deitada abaixo com estrondo e levanta uma nuvem de poeira que apenas consegue intensificar a tosse do velho, o visco que lhe obstrui as vias agora cheio de pó. 

“Baixem as armas!”, grita o polícia-ciborgue atrás de mim, “Repito, baixem as armas!”. O gordo está mais aterrorizado do que nunca, e não consigo evitar retrair-me ao vê-lo agitar a caçadeira na minha direcção, sem desviar os olhos do polícia e sem dizer o que quer que seja. Aponta o cano vigorosamente na minha direcção, como que a ameaçar que me desfaz em papa se alguém tentar alguma coisa. O barulho atrás de mim cessa de imediato. 

“Recuar.”, diz a voz metálica, “Recuar imediatamente!”, repete, a voz sem inflexão, mas a rapidez com que fala a demonstrar alguma da ansiedade que ainda preserva nos seus circuitos neuronais orgânicos. Uma vez fora do banco, volta a gritar: “Queremos falar com o terrorista!”. 

Ao ouvir isto levanto-me lentamente, sacudindo o pó. Tiro a caçadeira sónica das mãos do gordo e disparo-a à queima-roupa contra a sua cabeça, que explode com a reverberação. “Bem, uma vez que as autoridades não sabem brincar…”, começo eu a dizer, parando apenas para explodir com a cabeça do velho, “Parece-me que está na altura de acabar com a brincadeira.”. Aproximo-me das três figuras encapuzadas e viro uma delas ao pontapé, revelando finalmente a sua cara, que ostenta a marca triangular dos habitantes de um planetazinho remoto na galáxia de Andrómeda. 

“Ah! Já percebi, não são desta zona… Gostaram da visita?”, pergunto, antes de disparar contra os seus pequenos corpos em sucessão. Aproximo-me finalmente do cofre, onde disparo contra a cabeça do magro sem pensar duas vezes, e ainda chego apontar a caçadeira ao casal marciano que se abraça, as lágrimas a escorrerem abundantemente pelas feições azuladas de ambos. Mas engracei com a rapariga. Em vez disso olho para o cofre por abrir enquanto me baixo, largo a caçadeira e tiro um cubinho metálico de dentro de um bolso atrás da bomba que tenho presa ao peito. Sem nunca largar o detonador que tenho na mão esquerda, pouso a mão direita no ombro do rapaz, que se encolhe ao toque. 

“Cuida bem dela, rapaz.”, digo, embora nenhum dos dois me pareça ouvir. Levanto-me e olho novamente para o cofre. Solto um suspiro. Suponho que haja por aí muitos bancos à espera de serem assaltados. Pressiono dois dos vértices do cubinho, e carrego numa das faces com o indicador, para que a impressão digital seja lida. Com um pequeno barulho, praticamente inaudível, desapareço do banco.

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