25/05/2014

O Assalto II






Dizem que quando somos vítimas de uma experiência de quase morte o tempo abranda e toda a nossa vida nos passa de repente pelos olhos. Que se sobrevivermos, todo o tempo que vivemos nessa fracção de segundos nos ensina tantas coisas que nos tornamos numa pessoa diferente. O que não nos dizem é que isso acontece mesmo quando a morte que nos passa à frente dos olhos não é a nossa.

Agora que olho para trás apercebo-me que sempre fui demasiado agarrado ao dinheiro. Agradava-me a sua textura, a sua cor, o seu cheiro. Muitas vezes me sentava à mesa do meu escritório e abria o cofre para o contar, para ter a sensação de o ver crescer. A profissão de banqueiro sempre me pareceu, portanto, a mais interessante e adequada à minha pessoa, e com algum esforço consegui ascender rapidamente à posição de director. Era essa a posição que ocupava naquele ano em que a morte se atravessou no meu caminho.

Foi por altura de Maio. Mr. Connowell e Herr Krammer, os meus associados, tinham vindo para a sua visita de rotina trimestral, quando fazíamos um ponto de situação dos negócios. Mr. Connowell era o típico britâncio rigoroso, de bigodinho bem aparado, sempre demasiado servil, na tentativa de ganhar uns pontos na minha consideração. Herr Krammer era um alemão vermelhusco, tão inútil quanto o outro, mas menos escrupuloso, de modo que podia ao menos contar com a sua companhia para uma noite num casino ou fazer uma visita às meninas. De resto, detestava-os aos dois, e o nosso relacionamento acentava unicamente na conveniência.

Essa era uma altura de crise na Europa, em que os mercados estavam a decrescer, bem como o conteúdo dos cofres, pelo que essa reunião se destinava a arranjar soluções para o banco. Eu tinha em vista um plano de aumento dos juros dos créditos, bem como os encargos de manutenção de contas e transferências, mas os meus companheiros tinham outra coisa em mente. Informaram-me, como quem entrega uma carta de despedimento, que não viam mais vantagens em manter a minha filial aberta, e que não podiam suportar mais os custos de estar a mim associados.

Foi como se me tivessem dado uma bofetada na cara. Os crápulas! Tinham planeado tudo nas minhas costas para me tirar do terreno, para me subtraírem tudo aquilo por que tinha lutado durante tanto tempo! Nessa noite mal consegui dormir. Mr. Connowell e Herr Krammer ainda ficariam mais quatro ou cinco dias para tratar dos papéis necessários e definir um plano de comunicação para aletrar a imprensa e ter o "mínimo de prejuízo", diziam. Para eles, só se fosse. A mim não me restaria nada: nem emprego, nem dinheiro, nem reputação, e com sorte, até a puta que me aquecia a cama se iria embora.

Entre das minhas insónias, tive um daqueles delírios que consomem as mentes atormentadas de quem tenta desesperadamente cair em sono profundo, e encontrei uma solução para todo aquele emgróblio. Era algo rebuscado, arriscado, até, mas o dinheiro valia mais que a vida, que de qualquer forma já estava ameaçada. No dia seguinte levei Herr Krammer ao casino. Sentamo-nos na zona vip a beber Martinis, e mandei chamar uma menina para seu divertimento. Estava claramente a quebrar as suas defesas, chantageando-o de forma a não poder recusar.

A proposta era simples. Simulávamos um assalto ao banco central, em que dividíamos o cachet pelos dois, e só depois anunciávamos a bancarrota. Evitávamos os constrangimentos sociais, e ainda garantíamos uma boa reforma nalguma ilha paradisíaca. Connowell não podia saber de nada, claro, era demasiado respeitador e assutadiço para aceitar uma façanha dessas, para além de que ansiava a minha derrota para poder assumir o controlo do banco - Krammer era mais facilmente corrompível e faria tudo o que a Connowell aprouvesse.

A minha associação com o alemão não era obrigatória, mas fundamental para o sucesso desta empresa, pois Krammer encobrir-me-ia no caso de o inglês desconfiar de alguma coisa. Também lhe estava delegada a tarefa de fazer os contactos com o assaltante, não fosse o larápio dar com a língua nos dentes e arruinar, ainda mais, a minha carreira.

Combinou-se o assalto para daí a três dias, a ante-véspera da partida dos estrangeiros, logo para depois do almoço, de modo a encontrarmo-nos os três no átrio do banco e, de modo a tornar-nos vítimas directas e não levantar tantas suspeitas. Acontece que o mundo é irónico e cria-nos as coincidências mais incríveis a ver se nos convence a aceitar o destino. Assim, no dia combinado, dois tipos entraram pelo edifício adentro, com intenção de levar a cabo um assalto verdadeiro. Na altura eu não sabia que quem estava a levar o meu dinheiro para fazer aquele trabalho sujo era o refém encostado ao balcão e não aqueles dois idiotas que acabavam de entrar. Gritaram que nos deitássemos no chão, e obedeci, radiante, com Krammer e Connowell a repetir os meus passos.

Devia ter percebido que as coisas estavam mal quando foi disparado o primeiro tiro, contra um homem que, talvez pelo choque, não se baixara como os outros. Mas quando ouvi o corpo a cair no chão não consegui disfarçar um certo regozijo. Com uma vítima verdadeira, ninguém nunca desconfiaria que fora eu, e não eles, a arquitectar todo este plano.

Devia ter percebido que as coisas estavam mal quando ouvi o gordo a discutir como abrir o cofre - não tinha Krammer dado instruções aos assaltantes? Mas logo de seguida uma rapariguita do outro lado da sala ofereceu-se para abrir o cofre.

E só quando esta rapariga apareceu é que comecei a ter suspeitas. Quem era ela? Teria Herr Krammer superado as minhas expectativas e engenhado um plano bem mais elaborado que o meu, dando o código do cofre a uma possível vítima e evitando assim que os assaltantes soubessem demais?

E então uma mulher soltou um gritinho perto do local onde a outra rapariga estava. Já tinha reparado nela, a chorar baixinho desde que o assalto começara, mas agora parecia estar prestes a entrar em pânico. Engasgava-se entre o próprio ranho e as lágrimas, e ia cuspindo por entre a tosse aquilo que lhe obstruia a respiração. Era uma mulher gorda, obesa, até, com ar de quem nunca saiu da cidade e tem medo da própria sombra. Irritou-me. Se se deixasse dominar pelo pânico ainda começava a gritar e acabava por nos denunciar lá fora. Não podia deixar que isso acontecesse. Então, num impulso de raiva, saltei para cima da mulher e esganei-a com as minhas próprias mãos.

Só quando senti o seu corpo flácido a sucumbir é que me apercebi do que tinha feito. Matara uma pessoa. Matara uma pessoa, e ao fazê-lo denunciara a minha posição. Quem mais iria acreditar que eu era uma vítima, se matara alguém? O banco ser-me-ia tirado das mãos, bem como o seu lucro, e nunca mais teria uma vida apropriada à minha condição. Eu era um repeitável director de um banco, e não mais teria direito a viver como tal!

"Para que foi isso?!" grita um dos assaltantes do outro lado do balcão, apontando-me a arma. Mas quem lhe respondeu foi o rapaz franzino, com ar de vândalo que eu vira há pouco encostado ao mesmo balcão onde o assaltante se refugiava. "Para evitar o nervosismo da senhora..." Cego como estava, nem nesse momento me apercebi que era esse o rapaz que eu contratara, e confundiram-me as suas palavras - pensei que desconfiara de alguma coisa, e deixei-me ficar encostado ao chão, sem conseguir encará-lo, com medo que lesse a verdade nos meus olhos.

A polícia chegou entretanto. De onde apareceu e quem a chamou, permanecerá para sempre um mistério, mas limitaram-se a ficar no limiar da porta, gritando com os assaltantes para largarem as armas e deixarem sair os reféns. A estas palavras, os dois entreolham-se sem saber muito bem como agir, e acabam por se entregar à polícia, que trata de os levar rapidamente dali. O chefe da polícia identifica-me como o director do banco, vem ter comigo e pede-me paciência, que aguardemos mais um bocadinho no edifício enquanto chama uma ambulância para cuidar de nós.

E é nesse momento que o rapaz franzino se levanta, agarra numa das armas caída no chão, e nos coloca a todos, de novo, colados ao chão. Dirige-se ao cofre, abre-o sem qualquer dificuldade, não soubesse ele o código, e foge dali num ápice, sem que o chefe da polícia se aperceba de nada.

Daquele dia resultaram muitas coisas, mas o destino de cada um manteve-se como previsto: o banco declarou a bancarrota, o dinheiro nunca mais foi visto e eu acabei desempregado e falido, enquanto o alemão vermelhusco e a víbora que é Mr. Connowell regressaram a casa satisfeitos por se verem livres de mim. Felizmente os restantes reféns ficaram todos demasiado abalados com tudo o que sucedera para falarem da minha intervenção para com a senhora obesa, e até hoje a polícia acredita ter sido o terceiro assaltante a matá-la.

Quanto a mim, nunca esquecerei o olhar da morte quando me fitou pela última vez, e esqueci por momentos o resto do mundo, vendo a minha vida a passar-me à frente dos olhos e sentir que o resto da mesma a passaria atrás das grades. Felizmente, não aconteceu, e pelo menos para uma coisa serviu: nunca mais desafio o destino.

Já a sorte é outra história, e como parece que esta me favorece, agora dedico-me aos Casinos.

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