21/11/2014

LITERATURA

... um dia abri um livro de Calvino, e depois um de Borges e perdi-me nas suas páginas. Viajei por cidades impensáveis e tão reais quanto a minha imaginação, e descobri objectos fantásticos, infinitos e eternos.

No dia seguinte tentei juntar os dois, perceber como ligar Calvino, o absurdista e arquitecto de sonhos, com Borges, o cerebral e criador de maravilhas. A relação prometia ser óbvia, mas manteve-se tudo menos visível.

Li-os de uma ponta à outra, procurei outros livros, li-os também, descobri Doroteia pelos olhos de um e perdi páginas no livro arenoso de outro. Quando voltei a olhar o mundo, tinham-se passado meses.

Génios, ambos. LITERATURA com todas as letras grandes, daquela que não se lê, absorve-se, contempla-se, deseja-se!

E tudo isto porque...

05/11/2014

Não há sol em Paris


Rebeca Bonjour

O metro da linha 14 parou na estação com um chiar dos travões. As portas abriram automaticamente e deu-se uma pequena batalha entre aqueles que saiam e aqueles que entravam, que se empurraram mutuamente, uma tentativa de serem os primeiros a chegar ao destino.

Adrien não foi excepção. Empurrou dois rapazes novos com ar muçulmano e uma mulher com um carrinho de bebé e apressou-se para as escadas rolantes, onde um sinal indicava que ali se fazia a conexão com a linha 1. Artur nem reparou na indicação, sabia o caminho de cor: subir as escadas, esquerda, segunda à direita, passar o tapete rolante até ao fim do corredor, direita, subir as escadas, esquerda, descer as escadas. Pelo caminho ia dando cotoveladas a alguns turistas que paravam para tirar fotografias ou olhar os mapas. “Idiotas! Não se pára no metro de Paris”, pensou, enquanto prosseguia quase sem olhar, esquerda, segunda à direita, tapete rolante até ao fim do corredor, direita, subir as escadas, esquerda, descer as escadas.

A correria de Adrien era seguida por centenas de outras pessoas que se empurravam e acotovelavam como formigas a quem tivessem inundado o formigueiro. Havia empurrões, cotoveladas e calcanhares pisados, havia joelhadas, olhares fulminantes e suspiros impacientes, tudo muito sem querer, perdão, com licença.

Ironicamente, os corredores que interceptavam as linhas 1 e 14 ignoravam a confusão, e todos os dias se enchiam de música. Tocava-se violino, harmónica, trompete e violoncelo, uma pequena sinfonia interpretada por um grupo de russos de sorrisos amarelados pelos dentes de ouro que lhes enchiam a boca. O vai e vem não os parecia incomodar; tocavam com o empenho de quem dá um concerto para uma multidão e a alegria de quem só toca para si mesmo. De vez em quando, alguém deixava cair uma moeda na boina abandonada aos seus pés, e os sorrisos brilhavam um pouco mais. “Obrigada senhor” diziam, mesmo que o interlocutor fosse uma mulher.

Estariam na casa dos cinquenta, cabelos grisalhos e barrigas redondas, coletes de caça e botas de cabedal que usavam mesmo no verão, a pele branca ainda mais branca de se esconderem o dia todo nos subterrâneos da cidade. “Não há sol em Paris”, diriam aos familiares e amigos quando regressassem – se regressassem.

Aqui o tempo epassa mais depressa do que em qualquer outro lugar do mundo. Vieram os russos por uns meses, e de repente já nos cinquenta perceberam que se tinham passado anos, que tinham deixado para trás filhos e sonhos, os primeiros crescendo, os outros morrendo. “Tem piada o que o tempo faz às coisas”, pensavam enquanto tocavam, e no entanto parecia não haver tempo para pensar nisso.

Adrien não gostava dos Russos, assim como não gostava dos Romenos, dos Árabes ou dos Africanos. Não gostava de Portugueses nem Amercianos, e não estava certo sequer de gostar de Franceses quando seguia os corredores, segunda à direita, passar o tapete rolante, direita, esquerda, subir as escadas, descer as escadas, e as pessoas pareciam não lhe sair da frente, correndo por todo o lado, quais formigas atarantadas a quem inundassem o formigueiro. “Idiotas”, dizia então, esperando que libertassem o caminho, mas os outros pareciam fazer de propósito para demorar-se mais ainda.

Finalmente linha 1, o metro mais uma vez atrasado, “foi um acidente?”, “uma greve?”, as pessoas agitadas, já não consigo comprar pão, e a roupa para lavar!, nunca mais chegamos a casa, nunca mais chegamos a casa, mil vezes repetido pelas mil pessoas na estação. Quando chegarem vai ser noite, vão perceber que o tempo passou depressa demais, passa mais depressa do que qualquer lugar do mundo, nesta cidade. Não há pão para o jantar, a roupa ainda por lavar, e de repente já começa um novo dia, Adrien a caminho do metro, linha 1, depois subir as escadas, esquerda, segunda à direita, passar o tapete rolante até ao fim do corredor, direita, subir as escadas, esquerda, descer as escadas. Não há sol em Paris.

27/10/2014

Morrer é fechar uma porta que nunca esteve aberta

Martim abriu os olhos de repente, aterrorizado: tinha que se levantar e dar corda aos relógios! Não podia perder tempo, era para isso mesmo que tinha tantos, uma rede de ponteiros para não deixar escapar um único segundo.

E que agora tinham parado. O silêncio tenebroso era demasiado expressivo, demasiado intenso, não o queria, nunca o quis, precisava de dar corda aos relógios. Não o tinha conseguido fazer quando os ouviu parar, graças ao peso dos seus noventa e dois anos, que o levou a falhar uma ronda pela primeira vez, mas talvez agora que tinha morrido conseguisse.

Levantou-se com uma facilidade que não se lembrava de alguma vez ter tido e olhou em redor. Relógios, parados, com contornos difusos e esbatidos contra um fundo acutilante. A janela, fechada, quase invisível. E na cama, deitado, ele próprio. Velho, muito velho, e tão parado como os seus relógios.

Sentiu-se triste. Sozinho. Só ao olhar para si próprio percebeu o quão patética se tinha tornado a sua vida. Mais velho que velho, a gastar a maior parte das suas forças a dar corda a uma galeria imensa de relógios, preso na ilusão daqueles ponteiros todos, mas sem se preocupar em dar corda a si próprio.

Quis chorar, mas os ecos não choram, apenas repetem. Lembrou-se então de como era chorar. Fixou o olhar no seu corpo imóvel rodeado de lençóis e lembrou-se de sentir as emoções à flor da pele, as lágrimas a acumular e a caírem pelo seu rosto abaixo.

Chorou sem verter lágrimas, da mesma forma que existia sem viver. E não conseguiu evitar o destino de qualquer eco: repetir-se até desaparecer. Lembrou-se de mais coisas, cada vez mais intensas, cada vez mais próximas, mas antes de desaparecer tomou uma decisão.

Esforçou a memória para sentir a solidão que tinha sentido antes de morrer, e isso deu clareza aos relógios. Depois obrigou as mãos a lembrarem-se dos movimentos precisos para darem corda a um relógio, e começou a percorrer a casa, tique atrás de tique, taque atrás de taque. Começou a lembrar-se do barulho de cada um dos seus relógios e sorriu o mesmo sorriso de quando comprou o primeiro relógio, a verdadeira relíquia da colecção.

Quarenta minutos depois, tal como mandava o hábito, chegou ao último relógio a que tinha de dar corda. Sentou-se na beira da cama e encostou as mãos ao peito do seu corpo imóvel, e sentiu o coração a falhar como se estivesse a passar por tudo outra vez. Inspirou fundo, gritou o grito que tinha ficado perdido, e deu corda.

14/10/2014

12h35



Os relógios pararam às 12h35, deixando por toda a casa um eco silencioso. Cerca de setenta aparelhos espalhados pelas várias divisões a quem os ponteiros congelaram de repente e para toda a eternidade. Aos noventa e dois anos, Martim já não tinha força para se levantar e dar corda aos velhos relógios que tanto estimava e colecionara durante toda a vida. Deitado na cama, lembrou-se do primeiro que comprara, aos vinte anos, quando terminada a tropa regressava à sua cidade-natal, os bolsos mais cheios do que quando partira, e passando num relojoeiro – um relojoeiro à séria, daqueles que se dedicava de corpo e alma ao negócio, não um destes charlatães de hoje em dia – viu na montra o mais lindo relógio de que tinha memória.

Era todo esculpido em madeira, um único bloco trabalhado dias a fio com um cinzel, os ponteiros e o pêndulo feitos em prata, onde mandou o gravar o seu nome de família “da Veiga”. Colocou-o no centro da sala de estar, que nesse tempo não estava reservado a televisões, para que as suas visitas o pudessem admirar e nunca se atrasassem nos seus compromissos. Valia-lhe sempre os mais valiosos elogios “que lindo relógio”, “uma verdadeira relíquia”, pelo que Martim se apaixonava todos os dias pela peça, ao ponto de procurar o relojoeiro para lhe fazer uma outra, ao mesmo nível da primeira, que pudesse trazer sempre consigo.

O segundo relógio pendia assim de uma corrente em ouro. O mostrador era em veludo azul, no qual repousavam os ponteiros, duas delicadas patas de borboleta. Não tinha números, em vez disso fora esculpido no ouro uma marca para cada quarto de hora e um minúsculo diamante indicava as doze.

Tornou-se tradição. Uma vez por ano Martim da Veiga pegava nas suas poupanças e fazia visita ao relojoeiro. Não queria saber de férias, que considerava uma perda de tempo – para quê sair de casa quando tudo o que precisamos está aqui? – nem de grandes luxos. O dinheiro que tinha gastava-o no que mais gostava, os seus relógios. Aos noventa e dois anos, cerca de setenta aparelhos de todos os tamanhos e feitios espalhavam-se pelas divisões, ora pendurados nas paredes, ora pousados em mesas, cómodas e estantes, relógios de pé encostados a um canto, outros de pulso guardados em caix­as e bolsas de couro, relógios com numeração romana ou ocidental, com todos os números ou sem nenhum. Relógios em ouro, prata, madeira ou latão, tudo valia desde que o relógio fosse bonito – só havia um tipo de relógio proibido, os relógios digitais e a pilhas, tudo o que fosse plástico, barato e fácil de estragar. Não, relógios queriam-se era à antiga!

Assim, duas vezes ao dia, Martim perdia quarenta minutos a dar corda aos relógios, uma assim que se levantava e outra antes de se deitar. Era um hábito quase tão importante como escovar os dentes ou lavar a cara, e Martim percorria todas as divisões sem se esquecer de nenhum aparelho, dando-lhes corda com o mesmo carinho que dera no dia da sua compra.

Naquele dia dos seus noventa e dois anos Martim da Veiga não conseguiu, no entanto, levantar-se para dar corda aos relógios. Sentia-se extremamente cansado, e apesar de ter tentado, várias vezes, sair da cama, parecia faltar-lhe a força nas pernas. Deixou-se ficar, ouvindo o tique-taque que pouco a pouco foi esmorecendo, à medida que também aos relógios iam as forças. Às 12h35 congelou o último ponteiro, e a casa ficou mergulhada em silêncio. Era uma coisa tenebrosa: sem o murmúrio dos setenta relógios, que durante toda a sua vida tinham preenchido a casa, o espaço parecia incrivelmente vazio, como se de repente se tivessem despido as paredes, e aberto um poço tão profundo que não se via o fim.

O velho começou a sentir-se terrivelmente só.

Nunca até então se tinha sentido assim, como se lhe faltasse qualquer coisa por dentro, como se também a sua voz se fosse com o calar das engrenagens. Abriu a boca para gritar, mas sentiu que o ar lhe faltava. O que se escondia por trás da sua porta?, pensou.

Respondeu-lhe o silêncio. Tique-taque, apenas o seu coração batia.

O que se escondia por trás da sua porta? (Tique-taque.) O que se escondia no silêncio e que o mecanismo dos relógios (tique), o cantar dos cucos e o bater dos pêndulos tinham ocultado tanto tempo? (Taque.) O velho abriu a boca para gritar, mas saiu-lhe apenas um suspiro, o último sopro da sua vida. (Tique…)

A hora da sua morte ficaria para sempre congelada nos cerca de setenta relógios espalhados pelas várias divisões da sua casa; 12h35.

05/10/2014

Sozinho

Quando acordou não imaginava que ia morrer ao fim do dia. Levantou-se e fez a sua rotina normal, como se tivesse uma vida, uma década, um ano, um mês, uma semana, um dia pela frente. Saiu de casa e fez o caminho do costume, estava Sol, um dia bonito, disse os seus bons-dias e ouviu os dos outros, sorriu, assobiou, respirou, sentou-se.

Ouviu a chefe, ouviu os colegas, ouviu os clientes, não reteve nada. O seu trabalho era ouvir, não era lembrar. Ouvia, respondia, ouvia, respondia, ouvia, respondia, sempre tinha funcionado e sempre iria funcionar, para quê forçar outra coisa?

Um telefonema. Acabou de chegar do almoço com alguns colegas, durante o qual distribuiu piadas e gargalhadas como se se quisesse ver livre delas. O telefona toca a sua hora, e ele atende-o a toda a hora, é esse o seu trabalho, mas com aquele telefonema pensou duas vezes.

O telefone tocou da mesma forma, nada aconteceu de diferente. Excepto a percepção que ele teve. Não ouviu o telefone, ouviu a urgência de quem estava do outro lado, a urgência de quem precisa de falar, a urgência de quem acha que está a lidar com a morte.

Atendeu. O pai morreu, diz a irmã, chorosa, urgente, sem perceber. Desliga o telefone, a irmã continua a chorar e a não perceber, não dá conta. Ele continua a falar com clientes, porque percebe, sabe que o pai não morreu, a irmã apenas acha que sim. Se o pai tivesse morrido, ela não tinha urgência nenhuma, para quê sentir urgência com a morte, com os mortos? Não vão a lado nenhum.

Saiu do trabalho já com o Sol fora de vista, e ligou o telemóvel. Tinha-o desligado para não ter que ouvir mais ninguém que não percebia. O meu pai morreu, o teu pai morreu, ele era o meu tio favorito, gostava tanto dele, quem me dera ter passado mais tempo com ele, o teu pai morreu.

Ignorantes, todos, todos, todos. Inúteis. Não percebiam. Mas ele sim. Ele foi até ao cruzamento do costume e virou para a rua errada, andou ao ritmo errado, procurou pela casa certa. Bateu. Tocou. Abriram e entrou.

O meu pai morreu. Oh meu deus oh meu deus oh meu deus, estás bem, o que é que aconteceu, como é que te sentes. Voz urgente, tom urgente, sentimentos urgentes, pessoa urgente, pessoa ignorante. Não, também não percebia. Por muito amiga que fosse dele, também não percebia. Não percebes, o meu pai morreu, mas tu não percebes, não percebo o quê, não percebes, não dizes coisa com coisa, não preciso, o meu pai morreu.

Saiu, a amiga ligou à irmã dele, choraram as duas, não ligaram ao comportamento dele, está em choque, não aguentou, não atende o telemóvel a ninguém. Enquanto isso ele saiu da casa certa, ao ritmo certo, em direcção à rua certa e chegou a casa. Deixou-se cair na poltrona e agarrou na fotografia que estava na mesa ao lado, olá pai, olá filho, morreste, não morri nada, eu sei, eles não percebem, pois não, só tu meu filho, só eu, só eu, só eu, vem ter comigo, vem tu, não posso desmorrer, nem eu posso desviver, mas podes morrer.

Largou a fotografia, foi buscar uma faca, saiu um garfo, deixou-o cair, tirou uma faca, agora sim, voltou à poltrona, não escreveu bilhete, não pensou duas vezes, espetou-a no coração, que também não pensou duas vezes e morreu. O pai morreu e agora o filho, e a fotografia caiu, encheu-se de sangue, não era uma fotografia, era uma folha em branco.

29/09/2014

(outro) Escuro


(c)ideiafixa

Quando nasceste, fechaste os olhos.

Foi a primeira coisa que fizeste antes de deixares o corpo da tua mãe, adivinhando o que aí vinha: darem-te à luz, ofuscarem-te de repente com a claridade do mundo. Quando nasceste fechaste os olhos, mas dentro do corpo daquela que te deu nome tinha-los bem abertos. ­Há quem diga que o útero encerra mil e uma cores, algo parecido com a sensação do sol a penetrar as pálpebras cerradas, uma aurora boreal de vermelhos e laranjas desconcertados. Enganam-se. O útero está às escuras.

Foi assim que decidi receber-te, a ti e aos vários mundos que me habitam. Os homens aprenderam a associar-me às coisas más que a vida lhes dá, como se fosse minha a culpa de eles terem ganho medo ao desconhecido. Como se o desconhecido fosse uma coisa má…

Sempre associei o desconhecido à surpresa, à alegria do inesperado, à intriga do mistério. Escolhi encher-me desta opacidade para resguardar o saber. Queria ser uma espécie de nada para que dele viesse um todo. Queria ser uma espécie de espaço fora do próprio tempo, de forma a alcançar a perfeição. No escuro há tempo para reconstruir o que está errado, fazê-lo certo. Na luz não há espaço para erros.

Ah, mas bem depressa aprendeu o Homem a temer-me. Primeiro as crianças, com medo de que a luz se acenda e tudo tenha desaparecido, como se de uma ilusão se tratasse. Temem-me, por se sentirem incapazes de abdicar do mundo que ainda mal se lhes abriu e ainda não experimentaram completamente. Depois, em adultos, passam a temer o momento de fechar os olhos pela última vez, o escuro derradeiro que traz a morte, desconhecendo que do escuro só pode vir o tudo, nunca o nada.

Parece-me estranha esta conotação que me foi associada, quando vos dou tantos sinais da minha inocência. Só no escuro consegues a calma necessária para adormeceres. É o momento em que estás mais vulnerável, em que o teu inimigo poderia baixar-se sobre o teu rosto até lhe sentires a respiração, em que poderia passar-te um dedo pelo pescoço, fácil e certeiro, e tu não notarias nada, comprometido que estarias nos teus próprios sonhos. E mesmo assim, aceitaste sem questionar em confiar-te à escuridão, sabendo que ali estás protegido, como estavas no útero de tua mãe.

É também em mim que escolhes exercer o ritual último de ligação a alguém, quando entregas o teu corpo nu, indefeso, a essa outra pessoa que chamas tua. Dás-te completamente, no negro do quarto e dos lençóis, movendo-te uma paixão desenfreada, uma explosão de sentimentos que aquecem a alma. Não há o medo que em mim associas, pelo contrário, é assim que te parece mais certo que seja – no escuro.

Mas o maior presente que te trago é o poder mágico que te permite dividires-te de tudo aquilo que é físico e criares o teu próprio mundo. De fazeres aparecer coisas que não existem ou viveres uma vida que não é a tua. De criares palavras, sons, formas e cores. Sim, desse nada que é a obscuridade nascem o pensamento e a criatividade, a imaginação e o sonho. E que mais podes querer? Se do escuro do útero se forma o Homem, do escuro do Universo se formam mundos e do escuro da mente se formam ideias. É do negro mais negro que nascem as coisas, dessa imensidão de nada que leva ao tudo.

Quando nasceste fechaste os olhos. Negavas a luz, o que de novo te trazia. Depois habituaste-te a ela e fugiste de mim. Sou a causa das coisas más, das doenças e de tudo o que é sujo. É em mim que se escondem as criaturas vis, os sorrisos maliciosos e os sentimentos de vingança. Acusas-me de dedo em riste, esquecendo-te que és tu o causador daquilo de que te escondes. Eu sou um mar de opções, tu escolheste as tuas.

Mas agora é de mim que tens medo. Tens medo do escuro.

27/09/2014

No escuro


És uma pessoa normal. Dois olhos, duas pernas, uma boca, um coração, medo do escuro. Tudo aquilo que faz de ti um ser humano e ainda uma consciência. Um bónus completamente desnecessário. Tens noção disso, não tens?

Afinal, o objectivo de uma consciência é estranho, complicado e frequentemente pouco agradável. Remorsos. Pena. Angústia. Não deixas de fazer coisas “erradas”, apenas te sentes mal depois de as fazeres. E com o tempo, até isso passa. Os remorsos de prejudicares alguém diluem-se no bem-estar de te beneficiares a ti próprio.

É por isso que te estás a vestir. Já é tarde, bem de noite, mas não é isso que te impede de te vestires como se fosses fazer exercício. Nem de agarrares nas tuas “ferramentas”. Nunca vi ninguém chamar ferramenta a um martelo de forma tão errada. Gosto de ti.

Lembro-me perfeitamente de quando começaste. Sem dinheiro, sem ninguém, sem vida. Não passavas de mais um humano patético à espera de morrer. Até que aquele amigo te ligou. O que nunca te tinha ligado. O que conhecias tão mal que demoraste alguns segundos até reconhecer a voz rouca e mal tratada do outro lado.

“Então, o que dizes?”

Tão inocente. Nem pensaste duas vezes. Como qualquer falhado, a expectativa de um pouco de adrenalina deixou-te nos píncaros. Seguiste a canção da sereia mascarada de traficante de rua. Tinhas uma vida aborrecida. Querias algo mais.

Porque não assaltar casas?

“Quando?”

E agora aqui estás, sempre pronto, sempre desejoso. A adrenalina já ficou para trás, e pouco depois seguiram-se os remorsos. A única coisa que te move agora é o medo. Medo de seres apanhado, medo de levares um tiro nos cornos, medo de que a tua família saiba. Tanto medo e ainda não acertaste naquele com que te devias preocupar mais.

Eu sei que já ninguém assume ter medo do escuro, mas por alguma razão acendes sempre as luzes dos sítios por onde passas. Por algum motivo páras durante uma fracção de segundo sempre que passas os olhos por algum canto escuro e insuspeito, até na tua própria casa.

Até pode ser inconsciente, a maior parte das vezes, mas sabes que mais? Tens razão. Tens toda a razão. Deves ter medo do escuro. Estou cá eu.