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Quando nasceste, fechaste os olhos.
Foi a primeira coisa que fizeste antes de deixares o corpo da tua mãe, adivinhando o que aí vinha: darem-te à luz, ofuscarem-te de repente com a claridade do mundo. Quando nasceste fechaste os olhos, mas dentro do corpo daquela que te deu nome tinha-los bem abertos. Há quem diga que o útero encerra mil e uma cores, algo parecido com a sensação do sol a penetrar as pálpebras cerradas, uma aurora boreal de vermelhos e laranjas desconcertados. Enganam-se. O útero está às escuras.
Foi assim que decidi receber-te, a ti e aos vários mundos que me habitam. Os homens aprenderam a associar-me às coisas más que a vida lhes dá, como se fosse minha a culpa de eles terem ganho medo ao desconhecido. Como se o desconhecido fosse uma coisa má…
Sempre associei o desconhecido à surpresa, à alegria do inesperado, à intriga do mistério. Escolhi encher-me desta opacidade para resguardar o saber. Queria ser uma espécie de nada para que dele viesse um todo. Queria ser uma espécie de espaço fora do próprio tempo, de forma a alcançar a perfeição. No escuro há tempo para reconstruir o que está errado, fazê-lo certo. Na luz não há espaço para erros.
Ah, mas bem depressa aprendeu o Homem a temer-me. Primeiro as crianças, com medo de que a luz se acenda e tudo tenha desaparecido, como se de uma ilusão se tratasse. Temem-me, por se sentirem incapazes de abdicar do mundo que ainda mal se lhes abriu e ainda não experimentaram completamente. Depois, em adultos, passam a temer o momento de fechar os olhos pela última vez, o escuro derradeiro que traz a morte, desconhecendo que do escuro só pode vir o tudo, nunca o nada.
Parece-me estranha esta conotação que me foi associada, quando vos dou tantos sinais da minha inocência. Só no escuro consegues a calma necessária para adormeceres. É o momento em que estás mais vulnerável, em que o teu inimigo poderia baixar-se sobre o teu rosto até lhe sentires a respiração, em que poderia passar-te um dedo pelo pescoço, fácil e certeiro, e tu não notarias nada, comprometido que estarias nos teus próprios sonhos. E mesmo assim, aceitaste sem questionar em confiar-te à escuridão, sabendo que ali estás protegido, como estavas no útero de tua mãe.
É também em mim que escolhes exercer o ritual último de ligação a alguém, quando entregas o teu corpo nu, indefeso, a essa outra pessoa que chamas tua. Dás-te completamente, no negro do quarto e dos lençóis, movendo-te uma paixão desenfreada, uma explosão de sentimentos que aquecem a alma. Não há o medo que em mim associas, pelo contrário, é assim que te parece mais certo que seja – no escuro.
Mas o maior presente que te trago é o poder mágico que te permite dividires-te de tudo aquilo que é físico e criares o teu próprio mundo. De fazeres aparecer coisas que não existem ou viveres uma vida que não é a tua. De criares palavras, sons, formas e cores. Sim, desse nada que é a obscuridade nascem o pensamento e a criatividade, a imaginação e o sonho. E que mais podes querer? Se do escuro do útero se forma o Homem, do escuro do Universo se formam mundos e do escuro da mente se formam ideias. É do negro mais negro que nascem as coisas, dessa imensidão de nada que leva ao tudo.
Quando nasceste fechaste os olhos. Negavas a luz, o que de novo te trazia. Depois habituaste-te a ela e fugiste de mim. Sou a causa das coisas más, das doenças e de tudo o que é sujo. É em mim que se escondem as criaturas vis, os sorrisos maliciosos e os sentimentos de vingança. Acusas-me de dedo em riste, esquecendo-te que és tu o causador daquilo de que te escondes. Eu sou um mar de opções, tu escolheste as tuas.
Mas agora é de mim que tens medo. Tens medo do escuro.
Foi a primeira coisa que fizeste antes de deixares o corpo da tua mãe, adivinhando o que aí vinha: darem-te à luz, ofuscarem-te de repente com a claridade do mundo. Quando nasceste fechaste os olhos, mas dentro do corpo daquela que te deu nome tinha-los bem abertos. Há quem diga que o útero encerra mil e uma cores, algo parecido com a sensação do sol a penetrar as pálpebras cerradas, uma aurora boreal de vermelhos e laranjas desconcertados. Enganam-se. O útero está às escuras.
Foi assim que decidi receber-te, a ti e aos vários mundos que me habitam. Os homens aprenderam a associar-me às coisas más que a vida lhes dá, como se fosse minha a culpa de eles terem ganho medo ao desconhecido. Como se o desconhecido fosse uma coisa má…
Sempre associei o desconhecido à surpresa, à alegria do inesperado, à intriga do mistério. Escolhi encher-me desta opacidade para resguardar o saber. Queria ser uma espécie de nada para que dele viesse um todo. Queria ser uma espécie de espaço fora do próprio tempo, de forma a alcançar a perfeição. No escuro há tempo para reconstruir o que está errado, fazê-lo certo. Na luz não há espaço para erros.
Ah, mas bem depressa aprendeu o Homem a temer-me. Primeiro as crianças, com medo de que a luz se acenda e tudo tenha desaparecido, como se de uma ilusão se tratasse. Temem-me, por se sentirem incapazes de abdicar do mundo que ainda mal se lhes abriu e ainda não experimentaram completamente. Depois, em adultos, passam a temer o momento de fechar os olhos pela última vez, o escuro derradeiro que traz a morte, desconhecendo que do escuro só pode vir o tudo, nunca o nada.
Parece-me estranha esta conotação que me foi associada, quando vos dou tantos sinais da minha inocência. Só no escuro consegues a calma necessária para adormeceres. É o momento em que estás mais vulnerável, em que o teu inimigo poderia baixar-se sobre o teu rosto até lhe sentires a respiração, em que poderia passar-te um dedo pelo pescoço, fácil e certeiro, e tu não notarias nada, comprometido que estarias nos teus próprios sonhos. E mesmo assim, aceitaste sem questionar em confiar-te à escuridão, sabendo que ali estás protegido, como estavas no útero de tua mãe.
É também em mim que escolhes exercer o ritual último de ligação a alguém, quando entregas o teu corpo nu, indefeso, a essa outra pessoa que chamas tua. Dás-te completamente, no negro do quarto e dos lençóis, movendo-te uma paixão desenfreada, uma explosão de sentimentos que aquecem a alma. Não há o medo que em mim associas, pelo contrário, é assim que te parece mais certo que seja – no escuro.
Mas o maior presente que te trago é o poder mágico que te permite dividires-te de tudo aquilo que é físico e criares o teu próprio mundo. De fazeres aparecer coisas que não existem ou viveres uma vida que não é a tua. De criares palavras, sons, formas e cores. Sim, desse nada que é a obscuridade nascem o pensamento e a criatividade, a imaginação e o sonho. E que mais podes querer? Se do escuro do útero se forma o Homem, do escuro do Universo se formam mundos e do escuro da mente se formam ideias. É do negro mais negro que nascem as coisas, dessa imensidão de nada que leva ao tudo.
Quando nasceste fechaste os olhos. Negavas a luz, o que de novo te trazia. Depois habituaste-te a ela e fugiste de mim. Sou a causa das coisas más, das doenças e de tudo o que é sujo. É em mim que se escondem as criaturas vis, os sorrisos maliciosos e os sentimentos de vingança. Acusas-me de dedo em riste, esquecendo-te que és tu o causador daquilo de que te escondes. Eu sou um mar de opções, tu escolheste as tuas.
Mas agora é de mim que tens medo. Tens medo do escuro.
2 comentários:
Adoro o que vocês têm aqui. Isto realmente é um espaço interessante e muito bom! Criativo! Diferente!
Gostei imenso deste texto, e do seguimento que faz ao que o Rui tinha escrito.
Os meus sinceros Parabéns!
Hehehe, obrigada Julia!
Só nos dás mais vontade de continuar! :)
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