Os relógios pararam às 12h35, deixando por toda a casa um eco silencioso. Cerca de setenta aparelhos espalhados pelas várias divisões a quem os ponteiros congelaram de repente e para toda a eternidade. Aos noventa e dois anos, Martim já não tinha força para se levantar e dar corda aos velhos relógios que tanto estimava e colecionara durante toda a vida. Deitado na cama, lembrou-se do primeiro que comprara, aos vinte anos, quando terminada a tropa regressava à sua cidade-natal, os bolsos mais cheios do que quando partira, e passando num relojoeiro – um relojoeiro à séria, daqueles que se dedicava de corpo e alma ao negócio, não um destes charlatães de hoje em dia – viu na montra o mais lindo relógio de que tinha memória.
Era todo esculpido em madeira, um único bloco trabalhado dias a fio com um cinzel, os ponteiros e o pêndulo feitos em prata, onde mandou o gravar o seu nome de família “da Veiga”. Colocou-o no centro da sala de estar, que nesse tempo não estava reservado a televisões, para que as suas visitas o pudessem admirar e nunca se atrasassem nos seus compromissos. Valia-lhe sempre os mais valiosos elogios “que lindo relógio”, “uma verdadeira relíquia”, pelo que Martim se apaixonava todos os dias pela peça, ao ponto de procurar o relojoeiro para lhe fazer uma outra, ao mesmo nível da primeira, que pudesse trazer sempre consigo.
O segundo relógio pendia assim de uma corrente em ouro. O mostrador era em veludo azul, no qual repousavam os ponteiros, duas delicadas patas de borboleta. Não tinha números, em vez disso fora esculpido no ouro uma marca para cada quarto de hora e um minúsculo diamante indicava as doze.
Tornou-se tradição. Uma vez por ano Martim da Veiga pegava nas suas poupanças e fazia visita ao relojoeiro. Não queria saber de férias, que considerava uma perda de tempo – para quê sair de casa quando tudo o que precisamos está aqui? – nem de grandes luxos. O dinheiro que tinha gastava-o no que mais gostava, os seus relógios. Aos noventa e dois anos, cerca de setenta aparelhos de todos os tamanhos e feitios espalhavam-se pelas divisões, ora pendurados nas paredes, ora pousados em mesas, cómodas e estantes, relógios de pé encostados a um canto, outros de pulso guardados em caixas e bolsas de couro, relógios com numeração romana ou ocidental, com todos os números ou sem nenhum. Relógios em ouro, prata, madeira ou latão, tudo valia desde que o relógio fosse bonito – só havia um tipo de relógio proibido, os relógios digitais e a pilhas, tudo o que fosse plástico, barato e fácil de estragar. Não, relógios queriam-se era à antiga!
Assim, duas vezes ao dia, Martim perdia quarenta minutos a dar corda aos relógios, uma assim que se levantava e outra antes de se deitar. Era um hábito quase tão importante como escovar os dentes ou lavar a cara, e Martim percorria todas as divisões sem se esquecer de nenhum aparelho, dando-lhes corda com o mesmo carinho que dera no dia da sua compra.
Naquele dia dos seus noventa e dois anos Martim da Veiga não conseguiu, no entanto, levantar-se para dar corda aos relógios. Sentia-se extremamente cansado, e apesar de ter tentado, várias vezes, sair da cama, parecia faltar-lhe a força nas pernas. Deixou-se ficar, ouvindo o tique-taque que pouco a pouco foi esmorecendo, à medida que também aos relógios iam as forças. Às 12h35 congelou o último ponteiro, e a casa ficou mergulhada em silêncio. Era uma coisa tenebrosa: sem o murmúrio dos setenta relógios, que durante toda a sua vida tinham preenchido a casa, o espaço parecia incrivelmente vazio, como se de repente se tivessem despido as paredes, e aberto um poço tão profundo que não se via o fim.
O velho começou a sentir-se terrivelmente só.
Nunca até então se tinha sentido assim, como se lhe faltasse qualquer coisa por dentro, como se também a sua voz se fosse com o calar das engrenagens. Abriu a boca para gritar, mas sentiu que o ar lhe faltava. O que se escondia por trás da sua porta?, pensou.
Respondeu-lhe o silêncio. Tique-taque, apenas o seu coração batia.
O que se escondia por trás da sua porta? (Tique-taque.) O que se escondia no silêncio e que o mecanismo dos relógios (tique), o cantar dos cucos e o bater dos pêndulos tinham ocultado tanto tempo? (Taque.) O velho abriu a boca para gritar, mas saiu-lhe apenas um suspiro, o último sopro da sua vida. (Tique…)
A hora da sua morte ficaria para sempre congelada nos cerca de setenta relógios espalhados pelas várias divisões da sua casa; 12h35.
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