Martim abriu os olhos de repente, aterrorizado: tinha que se levantar e dar corda aos relógios! Não podia perder tempo, era para isso mesmo que tinha tantos, uma rede de ponteiros para não deixar escapar um único segundo.
E que agora tinham parado. O silêncio tenebroso era demasiado expressivo, demasiado intenso, não o queria, nunca o quis, precisava de dar corda aos relógios. Não o tinha conseguido fazer quando os ouviu parar, graças ao peso dos seus noventa e dois anos, que o levou a falhar uma ronda pela primeira vez, mas talvez agora que tinha morrido conseguisse.
Levantou-se com uma facilidade que não se lembrava de alguma vez ter tido e olhou em redor. Relógios, parados, com contornos difusos e esbatidos contra um fundo acutilante. A janela, fechada, quase invisível. E na cama, deitado, ele próprio. Velho, muito velho, e tão parado como os seus relógios.
Sentiu-se triste. Sozinho. Só ao olhar para si próprio percebeu o quão patética se tinha tornado a sua vida. Mais velho que velho, a gastar a maior parte das suas forças a dar corda a uma galeria imensa de relógios, preso na ilusão daqueles ponteiros todos, mas sem se preocupar em dar corda a si próprio.
Quis chorar, mas os ecos não choram, apenas repetem. Lembrou-se então de como era chorar. Fixou o olhar no seu corpo imóvel rodeado de lençóis e lembrou-se de sentir as emoções à flor da pele, as lágrimas a acumular e a caírem pelo seu rosto abaixo.
Chorou sem verter lágrimas, da mesma forma que existia sem viver. E não conseguiu evitar o destino de qualquer eco: repetir-se até desaparecer. Lembrou-se de mais coisas, cada vez mais intensas, cada vez mais próximas, mas antes de desaparecer tomou uma decisão.
Esforçou a memória para sentir a solidão que tinha sentido antes de morrer, e isso deu clareza aos relógios. Depois obrigou as mãos a lembrarem-se dos movimentos precisos para darem corda a um relógio, e começou a percorrer a casa, tique atrás de tique, taque atrás de taque. Começou a lembrar-se do barulho de cada um dos seus relógios e sorriu o mesmo sorriso de quando comprou o primeiro relógio, a verdadeira relíquia da colecção.
Quarenta minutos depois, tal como mandava o hábito, chegou ao último relógio a que tinha de dar corda. Sentou-se na beira da cama e encostou as mãos ao peito do seu corpo imóvel, e sentiu o coração a falhar como se estivesse a passar por tudo outra vez. Inspirou fundo, gritou o grito que tinha ficado perdido, e deu corda.