29/09/2014

(outro) Escuro


(c)ideiafixa

Quando nasceste, fechaste os olhos.

Foi a primeira coisa que fizeste antes de deixares o corpo da tua mãe, adivinhando o que aí vinha: darem-te à luz, ofuscarem-te de repente com a claridade do mundo. Quando nasceste fechaste os olhos, mas dentro do corpo daquela que te deu nome tinha-los bem abertos. ­Há quem diga que o útero encerra mil e uma cores, algo parecido com a sensação do sol a penetrar as pálpebras cerradas, uma aurora boreal de vermelhos e laranjas desconcertados. Enganam-se. O útero está às escuras.

Foi assim que decidi receber-te, a ti e aos vários mundos que me habitam. Os homens aprenderam a associar-me às coisas más que a vida lhes dá, como se fosse minha a culpa de eles terem ganho medo ao desconhecido. Como se o desconhecido fosse uma coisa má…

Sempre associei o desconhecido à surpresa, à alegria do inesperado, à intriga do mistério. Escolhi encher-me desta opacidade para resguardar o saber. Queria ser uma espécie de nada para que dele viesse um todo. Queria ser uma espécie de espaço fora do próprio tempo, de forma a alcançar a perfeição. No escuro há tempo para reconstruir o que está errado, fazê-lo certo. Na luz não há espaço para erros.

Ah, mas bem depressa aprendeu o Homem a temer-me. Primeiro as crianças, com medo de que a luz se acenda e tudo tenha desaparecido, como se de uma ilusão se tratasse. Temem-me, por se sentirem incapazes de abdicar do mundo que ainda mal se lhes abriu e ainda não experimentaram completamente. Depois, em adultos, passam a temer o momento de fechar os olhos pela última vez, o escuro derradeiro que traz a morte, desconhecendo que do escuro só pode vir o tudo, nunca o nada.

Parece-me estranha esta conotação que me foi associada, quando vos dou tantos sinais da minha inocência. Só no escuro consegues a calma necessária para adormeceres. É o momento em que estás mais vulnerável, em que o teu inimigo poderia baixar-se sobre o teu rosto até lhe sentires a respiração, em que poderia passar-te um dedo pelo pescoço, fácil e certeiro, e tu não notarias nada, comprometido que estarias nos teus próprios sonhos. E mesmo assim, aceitaste sem questionar em confiar-te à escuridão, sabendo que ali estás protegido, como estavas no útero de tua mãe.

É também em mim que escolhes exercer o ritual último de ligação a alguém, quando entregas o teu corpo nu, indefeso, a essa outra pessoa que chamas tua. Dás-te completamente, no negro do quarto e dos lençóis, movendo-te uma paixão desenfreada, uma explosão de sentimentos que aquecem a alma. Não há o medo que em mim associas, pelo contrário, é assim que te parece mais certo que seja – no escuro.

Mas o maior presente que te trago é o poder mágico que te permite dividires-te de tudo aquilo que é físico e criares o teu próprio mundo. De fazeres aparecer coisas que não existem ou viveres uma vida que não é a tua. De criares palavras, sons, formas e cores. Sim, desse nada que é a obscuridade nascem o pensamento e a criatividade, a imaginação e o sonho. E que mais podes querer? Se do escuro do útero se forma o Homem, do escuro do Universo se formam mundos e do escuro da mente se formam ideias. É do negro mais negro que nascem as coisas, dessa imensidão de nada que leva ao tudo.

Quando nasceste fechaste os olhos. Negavas a luz, o que de novo te trazia. Depois habituaste-te a ela e fugiste de mim. Sou a causa das coisas más, das doenças e de tudo o que é sujo. É em mim que se escondem as criaturas vis, os sorrisos maliciosos e os sentimentos de vingança. Acusas-me de dedo em riste, esquecendo-te que és tu o causador daquilo de que te escondes. Eu sou um mar de opções, tu escolheste as tuas.

Mas agora é de mim que tens medo. Tens medo do escuro.

27/09/2014

No escuro


És uma pessoa normal. Dois olhos, duas pernas, uma boca, um coração, medo do escuro. Tudo aquilo que faz de ti um ser humano e ainda uma consciência. Um bónus completamente desnecessário. Tens noção disso, não tens?

Afinal, o objectivo de uma consciência é estranho, complicado e frequentemente pouco agradável. Remorsos. Pena. Angústia. Não deixas de fazer coisas “erradas”, apenas te sentes mal depois de as fazeres. E com o tempo, até isso passa. Os remorsos de prejudicares alguém diluem-se no bem-estar de te beneficiares a ti próprio.

É por isso que te estás a vestir. Já é tarde, bem de noite, mas não é isso que te impede de te vestires como se fosses fazer exercício. Nem de agarrares nas tuas “ferramentas”. Nunca vi ninguém chamar ferramenta a um martelo de forma tão errada. Gosto de ti.

Lembro-me perfeitamente de quando começaste. Sem dinheiro, sem ninguém, sem vida. Não passavas de mais um humano patético à espera de morrer. Até que aquele amigo te ligou. O que nunca te tinha ligado. O que conhecias tão mal que demoraste alguns segundos até reconhecer a voz rouca e mal tratada do outro lado.

“Então, o que dizes?”

Tão inocente. Nem pensaste duas vezes. Como qualquer falhado, a expectativa de um pouco de adrenalina deixou-te nos píncaros. Seguiste a canção da sereia mascarada de traficante de rua. Tinhas uma vida aborrecida. Querias algo mais.

Porque não assaltar casas?

“Quando?”

E agora aqui estás, sempre pronto, sempre desejoso. A adrenalina já ficou para trás, e pouco depois seguiram-se os remorsos. A única coisa que te move agora é o medo. Medo de seres apanhado, medo de levares um tiro nos cornos, medo de que a tua família saiba. Tanto medo e ainda não acertaste naquele com que te devias preocupar mais.

Eu sei que já ninguém assume ter medo do escuro, mas por alguma razão acendes sempre as luzes dos sítios por onde passas. Por algum motivo páras durante uma fracção de segundo sempre que passas os olhos por algum canto escuro e insuspeito, até na tua própria casa.

Até pode ser inconsciente, a maior parte das vezes, mas sabes que mais? Tens razão. Tens toda a razão. Deves ter medo do escuro. Estou cá eu.


26/09/2014

No escuro #6

E o melhor de tudo é que no escuro tu não gritas. Nem pestanejas. Apenas tremes de medo. Sei-o bem. Consigo ver-te.

25/09/2014

No escuro #5

É fácil distraires-te. Não vês, não ouves, mas sentes que está lá. Encoberto. À espera. Nesses momentos em que tudo parece parar, faz-me um favor: sustém a respiração, acalma o coração, não te mexas e concentra-te. Eu sei que percebes. Está ali.

24/09/2014

No escuro #4

O que quer que seja, também não faz barulho. Vive silenciosamente, acompanhado apenas de ausência. Não te quer para nada, não precisa de ti. Mas então... Porque é que te calas? Quando fica escuro, porque é que falas menos e ouves mais? Não há nada para ouvir, excepto a tua própria respiração, talvez o bater do teu coração. Não achas isso estranho? Quando apenas o que vive na escuridão te pode ver, ganhas mais noção do teu próprio corpo. Mas não era a ti que devias prestar atenção.

23/09/2014

No escuro #3

A única razão para algo viver no escuro é não querer que o vejas. Ou não. Talvez não se queira ver a si próprio. Talvez goste de estar rodeado de escuridão. Por ser confortável. Sossegado. Escuro.

22/09/2014

No escuro #2

Já alguma vez pensaste no que é que vive no escuro? Porque é que a escuridão se faz tão impenetrável? Tem alguma coisa que não quer que tu vejas. Nem tu, nem ninguém. Algo que vive na escuridão, algo que olha para ti sempre que está tão escuro que reparas nisso, algo que nunca vês.

21/09/2014

No escuro #1

Gosto do escuro. É negro, é vasto, é sufocante. É confortável. Ninguém se quer aventurar no escuro, nem sequer olhar ou pensar nele. Mas ainda bem. A escuridão vive melhor sozinha. O medo que cria é propositado: se a explorassem, deixava de existir.