As prostitutas não dormem.
fotografia emprestada daqui. |
Descobri-o logo a seguir ao acidente, quando
comecei a deambular pela cidade durante a noite. A luz do dia parecia-me
demasiado perigosa - depois de o sol se pôr, só reparam no meu rosto quando já
é demasiado tarde para desviar o olhar.
Mas a vida de um noctívago pode ser bastante
solitária. A ausência de luz alimenta os fantasma, que no silêncio dos
adormecidos nos gritam aos ouvidos as palavras que nos esforçamos por apagar.
Para esquecê-los, torna-se necessário encontrar um passatempo, uma companhia.
Comecei por ir a bares, mas parecia tudo demasiado desadequado. As raparigas
eram jovens demais e os rapazes demasiado carregados de testosterona;
aborreciam-me as suas conversas de engate. A mim, evitavam-me.
Percebi então que me dava melhor entre os
socialmente rejeitados. Primeiro, as lojas dos marroquinos, abertas
clandestinamente a horas improváveis, na esperança de fazer o suficiente para
aguentar o fim do mês. Não lhes conseguia perceber as conversas, mas lia-lhes
os olhares enquanto vagueava pelos corredores abandonados, e sentia-lhes a
mesma solidão que eu mesmo carregava. Depois descobri os bordéis, disfarçados
com placas gigantes que anunciavam pensões, a ver se assim se esconde a
vergonha, farça facilmente desvendada pelas pernas despidas, demasiado grandes
para as minissaias coloridas, um chamariz para os clientes. Resultava melhor
que placas de néon fluorescentes, e durante toda a noite se iam sucedendo os
homens a entrar e a sair, à medida que também as pernas cá fora iam trocando
entre si, a noite toda: as prostitutas não dormem.
Havia de tudo. Desde os velhos solteirões aos
divorciados, aos mal-casados com fotografias dos filhos na carteira. Alguns
repetiam-se de noite para noite, outros vinham uma só vez e nunca mais
apareciam, "mas eles voltam sempre" ouvia dizer às meninas,
"mais cedo ou mais tarde, eles voltam sempre". E tanto antes como
depois do serviço, todos eles carregavam o mesmo olhar.
De vez em quando, no escuro da noite,
tocava-me sem que mais ninguém o notasse, enquanto imaginava os cenários que as
cortinas escuras do outro lado da rua escondiam. No entanto, nunca senti curiosidade
em experimentar. Durante o dia, entretinha-me com a Rosa Maria que, eternamente
apaixonada, fora a única pessoa que não mudara depois do acidente e continuava
a visitar-me com regularidade. Apesar de não conseguir retribuir-lhe os
sentimentos, mantinha-a por perto para me encher o ego e esvaziar os testículos,
enquanto secretamente me irritava ante a sua inocência e credulidade.
Escondido na soleira de uma qualquer
casa abandonada, insistia todas as noites em desfrutar do espectáculo gratuito
que tinha à minha frente. Intrigavam-me aquelas mulheres, a vida que levavam.
Mas sobretudo intrigava-me o facto de não haver nelas uma pinga de culpa, de
remorso ou de tristeza. Eram os olhares vazios de quem vagueia sem destino. Os
olhares dos miseráveis, como éramos todos os que viviam da noite.
Vivi assim durante vários meses, aprendendo a
reconhecer nesses olhares os meus companheiros. Um dia, deixei-me ficar até aos
primeiros raios da manhã. Fumava um cigarro. Do outro lado da rua, à porta da
pensão, era a vez de Isabella exibir as coxas. Era um nome falso, "artístico"
diziam elas, não fosse o sexo uma arte. Isabella era a rapariga mais procurada
na pensão, talvez porque não fosse tão jovem que lhe faltasse a experiência,
mas nova o suficiente para não ter perdido, ainda, as curvas. O cabelo, de um
loiro platinado, caia-lhe pelos ombros impecavelmente penteado, a anca
encostada ao ombral da porta.
Num impulso, desci a rua na sua direcção.
Outra prostituta sentava-se no vão da entrada, a limar as unhas. Nenhuma delas
me reconheceu. A rapariga que estava sentada deixou cair a lima quando fitou no
meu rosto o vazio onde outrora respirava uma narina. Olhou com terror o
labirinto de sulcos que se formara na minha pele, para me lembrar para sempre
por onde passara o ácido, que acabava num lábio inexistente, de onde
transpareciam os dentes e gengivas, e desviou o olhar. Já Isabella era uma
senhora, e não teve qualquer outra reacção que não um pestanejar.
"Quanto é?" perguntei.
"Duzentos o serviço completo". Sabia
que estava a inflaccionar o preço, mas era justo, dado o meu aspecto.
"Dou-te cento e oitenta", tentei.
Isabella sorriu e desapareceu no interior da pensão. Senti por ela alguma
ternura, enquanto a seguia para um dos quartos. Dizem que o amor não se compra
- ali estava eu a comprar o meu. Afinal, estava com alguém que me compreendia,
que partilhava os mesmos sentimentos, uma igual. Uma miserável, tal como eu. Se
voltaria a vê-la? "Eles voltam sempre" ouvi-a dizer, "mais tarde
ou mais cedo, mas voltam sempre".
2 comentários:
Uma pergunta:
O que devia ser crime?
Alguém que oferece o corpo e a alma por dinheiro ou quem procura comprar o corpo e a alma de outra pessoa?
Qual é o crime mais miserável, Beky?
Conto (des)agradável.
De O a 200, dou-lhe a nota de 180 :D
Olá Asesreis.
A ideia é mesmo mostrar uma personagem que critica e despreza alguém, mas que ao mesmo tempo se identifica e procura a companhia dessas pessoas : afinal, somos todos iguais ante o desprezo uns dos outros.
Só quero acrescentar que, sendo uma história, retrata um ponto de vista imaginado de uma personagem, não a minha opinião pessoal! :)
Obrigado pelo comentário e vai passando no blogue!
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