Naz Mina Mert |
“Duzentos
o serviço completo”, disse a voz fria de Isabella. Era
só mais um cliente à procura
de sexo fácil. Caro, mas fácil.
“Dou-te
cento e oitenta”, respondeu o homem, claramente
desesperado, a voz a tremer. A sombra de
Isabella acha-o
uma criatura frágil,
mas a fragilidade também lhe parece
demasiado óbvia. Um homem pobre, desesperado e infeliz, um homem em
busca de amor, por mais fugaz que seja, um homem que sai à noite
para visitar prostitutas e não se queixa do preço demasiado alto.
Um miserável.
Misturando-se
com a escuridão dos corredores do bordel, a sombra da prostituta
começou a esticar e a retrair os seus filamentos negros. Estava
nervosa. Isabella
era o seu corpo e quem lhe emprestava as formas exageradas e
acentuadas de uma mulher a entrar em lenta decadência, mas a recusar
reconhecê-lo. Já não seria a primeira vez que um homem a tentava
matar, depois de ela tirar a roupa e ver a mercadoria carnal pela
qual estava a pagar.
E
o que é a sombra de um cadáver?
Os
saltos de Isabella percorreram o seu pequeno quarto, primeiro
seguidos pela sombra e depois atirados para o canto oposto. Eram
demasiado altos, demasiado brilhantes, demasiado tudo. E eram sempre
os mesmos. A sombra conhecia-os quase tão bem como a Isabella, o
barulho que faziam ao percorrer o soalho de madeira, os sítios onde
estavam mais gastos e já não brilhavam, os remendos bem disfarçados
que já quase tinham feito desaparecer os sapatos originais. E o
vermelho. Tão vivo, tão sensual, tão marcante. Tudo o que a sombra
não era. Mas também um vermelho decadente e repulsivo, um vermelho
miserável. Mais do que aquilo que a sombra era.
“Sabes,
as meninas assustam-se muito contigo.”, comentou casualmente
Isabella enquanto sentava o homem na cama e andava descalça pelo
quarto, provocante, a sombra a dançar atrás dela e com ela,
a acompanhar
e a imitar
todos os movimentos, numa sintonia tão perfeita que não era
possível dizer quem guiava e quem seguia. Quem
vivia e quem morria.
E
o que é a sombra de um cadáver?
O
homem continuava silencioso. Quando Isabella interrompeu a dança e
começou a dança do seu ofício, a sombra olhou finalmente para o
homem e perdeu a noção de tudo. Sentado na cama estava um corpo sem
vida, mas com um coração que batia, uma cara incompleta com uns
olhos que viam. Sentado na cama estava um homem que não sentia, ou
que sentia demasiado. Sentado na cama estava um homem que a sombra
não percebia.
O
vestido de Isabella caiu ao lado da cama, dobrando-se sobre si
próprio num círculo de tecido de cor desinteressante. A sombra
sentiu-lhe o cheiro e a textura, mas ignorou-o, pois a prostituta
tinha à sua frente um homem marcado. Os sulcos que lhe percorriam a
cara eram aleatórios, mas não pareciam. Linhas irregulares que se
estendiam de cima para baixo, ou de baixo para cima, a sombra não
conseguia dizer. Os dentes do homem eram visíveis no lugar onde
devia haver lábio. Metade do nariz tinha desaparecido, e um dos
olhos era completamente branco e seguia os movimentos libidinosos de
Isabella sem realmente os ver.
Com
os braços, a prostituta rodeou o pescoço do homem e aproximou a
cara da dele, sem reagir minimamente à desfiguração. Fixou o azul
deslavado do seu olhar no castanho vivo do único olho são do
miserável à sua frente e murmurou qualquer coisa que a sombra não
conseguiu ouvir.
Beijou-o.
Os
braços magros de Isabella tiraram a roupa ao homem com meia cara e
ela sentou-se em cima dele, provocadora como sempre. As sombras de
ambos misturaram-se, mas a do homem não reagiu. Limitava-se a seguir
os vagos movimentos de um homem destroçado, estremecendo com ele ao
toque de umas unhas compridas nas feridas da cara.
Quando
a sombra de Isabella percebeu que a do homem estava morta, era tarde
demais, os corpos já se tinham enlaçado e mexiam-se freneticamente,
entregues a uma ilusão de paixão. Os gemidos e os gritos e os
suspiros, tudo misturado nas respirações aceleradas de duas pessoas
que não se conheciam mas que enquanto se tocassem, se amavam.
De
repente o homem soltou um gemido estrangulado e caiu quase inerte e a
arfar sobre o corpo da prostituta que, sem dizer nada, esperou que
ele se levantasse para se vestir. A sombra conseguia sentir nos seus
movimentos que não gostava daquele trabalho. Quando começou pensava
que preferia morrer.
E
o que é a sombra de um cadáver?
Isabella
estendeu a mão, sem esperar que o homem se vestisse. O olhar duro
dizia tudo o que era preciso: paga.
“Eu...”,
o tom hesitante era sempre mau sinal, mas a sombra de Isabella estava
distraída com a sombra morta do homem com meia cara, “Eu só tenho
cem euros.”
Sem
pensar duas vezes, a prostituta aproximou-se e beijou-o na testa.
Talvez tenha sido da cara do homem, ou da honestidade com que ele se
perdeu no corpo dela, mas Isabella perdoou-o. Sabia o que era estar
sem dinheiro. Estava naquela profissão por uma razão. Ele que
tivesse cuidado e não assustasse as meninas.
“Mas
e o dinheiro?”
“Pagas
para a próxima.” como se fosse haver uma próxima. A sombra sabia
bem que não. Isabella não tinha feito dinheiro suficiente para
pagar o que devia, no fim da noite. Aquele homem marcado era a sua
última hipótese. Mas ela não se importava. Tinha-o feito feliz.
“Como
é que sabes que nos voltamos a ver?”
“Eles
voltam sempre”, disse ela enquanto o homem saía do quarto, “mais
tarde ou mais cedo, mas voltam sempre”. A sombra deslizava atrás
dele, mas estava morta. Miserável.
E
o que é o cadáver de uma sombra?
Sem comentários:
Enviar um comentário