27/09/2014

No escuro


És uma pessoa normal. Dois olhos, duas pernas, uma boca, um coração, medo do escuro. Tudo aquilo que faz de ti um ser humano e ainda uma consciência. Um bónus completamente desnecessário. Tens noção disso, não tens?

Afinal, o objectivo de uma consciência é estranho, complicado e frequentemente pouco agradável. Remorsos. Pena. Angústia. Não deixas de fazer coisas “erradas”, apenas te sentes mal depois de as fazeres. E com o tempo, até isso passa. Os remorsos de prejudicares alguém diluem-se no bem-estar de te beneficiares a ti próprio.

É por isso que te estás a vestir. Já é tarde, bem de noite, mas não é isso que te impede de te vestires como se fosses fazer exercício. Nem de agarrares nas tuas “ferramentas”. Nunca vi ninguém chamar ferramenta a um martelo de forma tão errada. Gosto de ti.

Lembro-me perfeitamente de quando começaste. Sem dinheiro, sem ninguém, sem vida. Não passavas de mais um humano patético à espera de morrer. Até que aquele amigo te ligou. O que nunca te tinha ligado. O que conhecias tão mal que demoraste alguns segundos até reconhecer a voz rouca e mal tratada do outro lado.

“Então, o que dizes?”

Tão inocente. Nem pensaste duas vezes. Como qualquer falhado, a expectativa de um pouco de adrenalina deixou-te nos píncaros. Seguiste a canção da sereia mascarada de traficante de rua. Tinhas uma vida aborrecida. Querias algo mais.

Porque não assaltar casas?

“Quando?”

E agora aqui estás, sempre pronto, sempre desejoso. A adrenalina já ficou para trás, e pouco depois seguiram-se os remorsos. A única coisa que te move agora é o medo. Medo de seres apanhado, medo de levares um tiro nos cornos, medo de que a tua família saiba. Tanto medo e ainda não acertaste naquele com que te devias preocupar mais.

Eu sei que já ninguém assume ter medo do escuro, mas por alguma razão acendes sempre as luzes dos sítios por onde passas. Por algum motivo páras durante uma fracção de segundo sempre que passas os olhos por algum canto escuro e insuspeito, até na tua própria casa.

Até pode ser inconsciente, a maior parte das vezes, mas sabes que mais? Tens razão. Tens toda a razão. Deves ter medo do escuro. Estou cá eu.


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