28/06/2014

Disosmia

Disosmia s. f. : é uma doença que leva a uma percepção distorcida do olfacto.


Olívia Griselda

“Estás diferente”, disseste pouco depois do meu regresso.

“Passaram três anos”, respondi simplesmente, calando as palavras que me arranhavam por dentro.

Três anos de guerra. Três anos de guerra para voltar a casa desprovido de olfato. “Podia ser pior”, dirias, como disseste na noite em que cheguei, e que era o mesmo que dizer “isso não é nada”. Que há quem perca braços e pernas, que há quem se lhe voe os miolos. Ah, mas a morte assusta menos que a dor, e a física passa com o tempo, habituamo-nos. A outra não.

Deste-me a via da dúvida e esperaste alguns meses que me adaptasse. “É uma questão de tempo” dizias, para logo a seguir te desfazeres em lágrimas “é só o olfato, caramba!”, em jeito de acusação, por já não me aninhar em ti à noite, ou te recusar os abraços que me pedias, e que outrora vinham tão espontaneamente. Depois mais calma, de novo, “é uma questão de tempo”.

Passou-se um ano, parecia já não haver tempo. Fizeste as malas e saíste de casa, deitando-me um último sorriso triste. Deixaste-me por estar diferente, ignorando que quem tinha mudado eras tu.

Cheiras-me a pólvora. De cada vez que te abraço voltam os tiros, os gritos, os corpos a desfazerem-se sob as explosões. O cheiro a enxofre, a carne humana queimada, a feridas embrulhas em gazes imundas, escorrendo líquidos amarelados. Parece que volto a senti-los todos e ao mesmo tempo, sem saber ao certo qual deles me baralhou o olfato para sempre. A terra molhada é agora sangue coagulado. A compota ao lume, uma ida às latrinas. Até a maresia se transformou em centenas de corpos empilhados, decompondo sob o calor de um qualquer país do médio oriente terminado em “ão”.

E tu, cheiras-me a pólvora.

Deixei assim que te fosses de vez, “passaram três anos”, dizias tu, “estou diferente”, respondia eu. Fiquei sozinho nesta casa que tresanda a mofo, que tresanda a memórias que não consigo apagar. É só o olfato, caramba! Mas está presente durante todo o meu dia-a-dia, o olfato. Evito o café, que me sabe a vómito; o leite está sempre azedo; a água do duche lembra-me lagos estagnados. À noite, a minha cama guarda o cheiro dos refugiados, o cheiro de quem não se lava, de mil sem-abrigos agarrando-se aos meus pés, desesperados, pedindo ajuda; e o cheiro dos outros, que se cansaram de pedir, que já nem rastejam do seu canto onde se deixam apodrecer.

E não imaginas quantas vezes peguei no telefone, querendo ligar-te, pedir que voltes, prometer-te que te vou abraçar, sabendo que logo se romperia a promessa quando as minhas narinas se enterrassem na tua pele – cheiras a pólvora.

Passou mais um ano. Um ano de pesadelo sem fim, de olhos bem abertos. Estou agora na cozinha onde tudo começou, bem antes da guerra, quando assinávamos os papéis que nos comprometiam num futuro a dois. Nessa noite, a casa ainda despida, deitados no colchão provisoriamente colocado no chão, sussurraste-me o quanto seríamos felizes – terá sido nesta vida?

Tenho um fósforo na mão, o gás está ligado. E vem de repente – entre o cheiro a morte do fósforo aceso, sinto outro que há muito se perdeu, tão remoto que não lhe encontro o rasto. Acendo a chama, o cheiro vai-se, perdi-o. Para onde foi? Apago o bico do fogão e primo de novo o botão do gás. O odor volta. Pela primeira vez desde a guerra, é agradável.

O cheiro dos teus cabelos.

Perdi-o. Larguei o botão com a surpresa. Apresso-me de novo para ele, pressiono-o, desta vez já com as narinas enfiadas no disco. Não me enganei. Depois de tanto tempo sem senti-lo, o cheiro dos teus cabelos. Lembro-me o quanto gostavas deles, enrolando-os nos dedos enquanto falavas. Lembro-me de me fazer cócegas no pescoço quando me abraçavas, de me cair no rosto quando…

Sinto o aroma dos teus seios quentes – quase lhes toco, tão reais me parecem de repente. Tenho na ponta da língua o salgado dos teus lábios, o hálito fresco que se enrola na minha boca. Uma vez mais és minha, e abraço-te com todas as minhas forças, “desta vez não te deixo ir”, unimo-nos num beijo eterno, “desta vez não te deixo ir”, enquanto a botija de gás te vai vazando aos bocadinhos, e eu, deitado sobre o fogão, mergulho nos teus cabelos.



Ver o texto do Rui

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